O PARASSEXUADO E O PARADOXO
- Marcelo Braz de Almeida
- 30 de nov. de 2020
- 5 min de leitura
Atualizado: 6 de out. de 2021

Cartel sobre as fórmulas da sexuação.*
No Seminário 20, página 16, Lacan afirmou que "o gozo do Outro, do corpo do Outro, só se promove pela infinitude. Vou dizer qual -aquela, nem mais nem menos, que dá suporte ao paradoxo de Zenão. Aquiles e a tartaruga, tal é o esquema de gozar de um lado do ser sexuado." O que podemos extrair, em princípio, deste enunciado? Podemos extrair que o gozo do Outro é definido por Lacan a partir da matemática.
Para começarmos a desenvolver esta extração, é preciso que, primeiro, vocês tenham em conta que temos mais do que um infinito, que temos infinitos com grandezas diferentes, com cardinalidades diferentes e que isto está em jogo no espaço de gozo de Aquiles e no espaço de gozo da tartaruga. A partir daí, poderemos definir qual infinito está em jogo no gozo do Outro.
Depois, devemos nos perguntar por que o paradoxo de Zenão é um paradoxo? Ora, porque Aquiles, supostamente, deveria vencer a tartaruga com tranquilidade por ter sido o maior entre os guerreiros que já existiram (percebam a ironia disto), entretanto não pode vencê-la. Essa é a primeira resposta que nos ocorre em quase 100% das vezes que somos perguntados, mas há outra. Devemos lembrar que a etimologia da palavra paradoxo está na palavra grega "parádoxon", que significa uma opinião (doxon) que está ao lado (para) de outra opinião sem jamais se encontrarem. Logo, é um paradoxo, porque as lógicas de Aquiles e da tartaruga nunca se encontram.
Aqui, vamos colocar uma ênfase no prefixo grego "para". Aquiles e a tartaruga nunca se encontram, porque correm de maneira paralela, um ao lado do outro sem jamais se encontrarem tal qual os dois lados das fórmulas da sexuação. Que eles não se encontrem não quer dizer que não se toquem em algum ponto no espaço. Imaginem ambos correndo com um muro entre eles. Ambos estão em dimensões paralelas. Esta é justamente a característica do gozo do Outro; ser um gozo "para", parassexuado: "o gozo do Outro é fora da linguagem... o gozo do Outro, na condição de parassexuado -para o homem, gozo da suposta mulher, por outro lado, para uma mulher, gozo do homem- esse gozo do Outro parassexuado não existe..." (Lacan, A Terceira, p. 32). Não existe, porque só existiria se houvesse na linguagem um dito possível sobre o gozo que acontece do outro lado do muro que divide o falasser. Se existisse uma forma de intermediar esses dois lados que jamais se encontram, seria por meio da fala do falasser, a fala de amor na verdade. A fala de amor é a única forma possível de fazer existir a relação sexual, que não há. Paradoxal! Tal é a desgraça do falasser: se ele goza do lado homem das fórmulas, ele não goza do lado mulher. Se ele goza do lado mulher das fórmulas, ele não goza do lado homem, ou seja, o falasser não pode gozar dos dois lados da sexuação simultaneamente, não existe 1 + 1, o que é sinônimo de dizer que não há relação sexual e que o gozo do Outro não existe. Se ele existisse, tal soma seria possível. Para o homem (Aquiles), o gozo da mulher permanece intransponivelmente como um Outro gozo. Para a mulher (a tartaruga), o gozo do homem permanece intransponivelmente como um Outro gozo também. Nessa divisão intransponível, o sexuado e o assexuado permanecem Outro, parassexuados.
Seria um mundo maravilhoso se o gozo do Outro existisse, pois haveria relação sexual e o aleph zero +1 chegaria a aleph um (a hipótese do continuum), não permaneceria sempre aleph zero, o dois seriam dois (1 + 1), não seriam "deles" (Lacan, O Aturdito, p. 478). Uma forma cantoriana de dizer que o gozo de Aquiles e o gozo da tartaruga nunca fazem Um. O jogo homofônico que Lacan constrói entre dois e deles (deux e d'eux) aponta para a inacessibilidade de Aquiles (e de qualquer falasser) ao número dois (deux), o qual permanece sempre alheio (d'eux), pois o número dois -o segundo quarteirão no qual Aquiles se encontraria com a Tartaruga segundo os matemáticos gregos da antiguidade- sempre está para além de mais uma fração: 1 + 1/8+1/16+1/32... infinitamente.
Aquiles goza num espaço que é fálico, sob uma lógica que é marcada por uma presença e uma ausência inscritas (1 e 0), marcado por uma centralidade, ou por uma ausência que tem como referência uma centralidade sob a qual tudo gira formando uma cosmologia enumerável, é por isso que seu infinito é o infinito do conjunto dos números naturais, do conjunto dos números inteiros e do conjunto dos números racionais. Todos infinitos com o mesmo tamanho, portanto, com a mesma cardinalidade (aleph zero) marcada pelo limite no infinito, ou pelo limite infinito, sempre assintótico, sempre uma função assintótica. Essa cosmologia fálica criada pelo homem (Aquiles) dá lugar ao sujeito masculino, o qual jamais se faz presente de todo, há sempre um vazio acompanhando o representante do sujeito, uma falta a ser, uma ausência, e que, simultaneamente, aponta para a castração do Outro na medida em que este pode emprestar +1 significante ao sujeito infinitamente. O Outro poderia, potencialmente, dar-lhe todos os significantes, mas nunca poderia dar-lhe, em ato, todos ao mesmo tempo e não poderia dar-lhe o definitivo. O espaço de gozo de Aquiles está determinado pela incompletude e pela enumeração.
No entanto, a tartaruga goza num espaço que é marcado por um único ponto de bijeção entre o seu infinito e o infinito de Aquiles, o aleph zero, que faz com que seu gozo ex-sista a partir desta compacidade { } entre este número e o segundo número transfinito. Em lugar do limite infinito, ou do limite no infinito, uma borda aberta ao transfinito a partir do segundo número, o aleph um: aleph um, dois, três... o infinitamente não enumerável no conjunto dos números Reais. Aquiles não pode ganhar da tartaruga, porque ela não é uma referência para ele, ela é sempre Outra. Seu infinito não é apenas radicalmente diferente do infinito de Aquiles, ele é maior do que o infinito de Aquiles, ele transborda, ele faz com que o falasser se sinta, contingencialmente, "transbordado" na posição feminina como diria Bassols ao citar um caso clínico. A tartaruga corre também, mas não corre atrás de algo, pois está marcada pela presença não enumerável do Um, pela inexistência da exceção. Ela não corre 100 metros, ou 100 metros +1, ela corre sempre fora do que se pode enumerar. Assim como Aquiles é Outro para ela, ela é Outra para si mesma. O gozo da tartaruga é o gozo do aleph um, o gozo feminino, um gozo "contínuo" (IR) numa reta infinita (obs matemática: os números irracionais (][) também são aleph um, mas são descontínuos: raiz quadrada de dois, raiz quadrada de três, raiz quadrada de cinco, etc, infinitamente).
Agora, podemos definir qual é o infinito do gozo do Outro, pois já sabemos que ele não é o infinito do gozo do homem e não é o transfinito do gozo da mulher. O infinito do gozo do Outro é o infinito daquilo que não existe nem nunca existirá, o infinito do desencontro entre os dois lados da sexuação.
Cartel: Marcelo Braz (+1), Danielle Omine, Gleice Taciana Barbosa, Luciene Ferreira, Luana Santos Silva.*
Referências Bibliográficas:
LACAN, Jacques. O seminário, livro 20. 2ª ed. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed, 1985.
LACAN, Jacques. O Aturdito, in Outros escritos. 1ª ed. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed, 2003.
LACAN, Jacques. A terceira, in Opção Lacaniana 62. Rio de Janeiro: EBP, 2011.
BASSOLS, Miquel. O feminino, entre centro e ausência, in Opção Lacaniana online 23. Rio de Janeiro: EBP, 2017.
VIEIRA, Marcos André. Limites, in Latusa Digital 47. Rio de Janeiro: EBP, 2011.
AMSTER, Pablo. La matemática como una de las bellas artes. 1ª ed. Buenos Aires, Siglo XXI Ed, 2013.
Oi Marcelo, gostei muito do seu texto. Maya