Giro no tempo – Resenha: Antecedentes da Psicose Ordinária
- Marcelo Braz de Almeida
- 27 de abr. de 2020
- 6 min de leitura

Às vezes, abordamos a psicose ordinária com uma certa naturalidade, como se ela já fosse um conceito consolidado, sedimentado. Porém, amiúde, a abordamos como algo não familiar, que nos deixa interrogações no momento seguinte ao que acreditamos apreendê-la. Esta relação com o unheimlich que o conceito parece nos remeter é justamente o que nos tira da zona de conforto e que volta a desnaturalizar o que poderia ser naturalizado. Por repetirmos tantas vezes este significante, somos levados a uma certa habituação no sentido comportamental, a mesma habituação que faz com que o ruído provocado por um avião já não nos seja assustador. O que talvez não seja tão evidente seja o quão não-natural é o papel deste ou qualquer significante naquilo que costumamos chamar de Natureza. Para aqueles que estão algo habituados com a coisa freudiana, não provoca estranheza que o significante evoque tantos ruídos quanto um avião, pois se sabe que ambos são da mesma natureza, qual seja, desnaturalizados. É neste lugar da familiaridade estranha que a psicose ordinária costuma ser abordada no seio da EBP-Bahia e do IPB. Visando que ela seja mais íntima, Iordan Gurgel resolveu levar ao Núcleo de Psicose do IPB uma busca por suas origens, traçar sua genealogia, perseguir suas pegadas tanto na psiquiatria como na causa-coisa freudiana. Será o nosso papel aqui resumir este percurso que vem sendo trabalhado no Núcleo de Psicose.
Os primeiros antecedentes foram buscados numa comparação entre a hebefrenia e a heboidofrenia.
A hebefrenia foi definida por Karl Kahlbaum (1863) como uma patologia psíquica que aparece primordialmente na adolescência e que leva invariavelmente à loucura. Os pacientes hebrefrênicos demonstram sinais claros de ruptura gradativa com a realidade, degeneração das faculdades mentais, sendo claramente uma alienação com alucinações e delírios fugazes, maneirismos, transtornos afetivos que frequentemente se desdobram em ataques de fúria, apatia, humor instável. A hebrefenia entra claramente no grupo das esquizofrenias.
Mas, em 1884, Kahlbaum e seu discípulo Hecker descreveram uma síndrome vizinha à hebefrenia e que se assemelha ao que hoje é chamado de transtorno borderline, o qual veremos mais a frente. Finalmente, em 1890, Kahlbaum chegou ao termo heboidofrenia. Esta foi definida como uma enfermidade mental que atinge adolescentes e jovens adultos caracterizada pela predominância do comportamento oscilante entre o agressivo e o indiferente, que é uma consequência do transtorno afetivo também encontrado na hebefrenia. As alterações seriam, segundo Iordan, “principalmente na esfera das relações sociais e da personalidade”. A heboidofrenia não possui signos claros de alienação e o quadro patológico não caminha em direção à ruptura com a realidade e o empobrecimento das faculdades cognitivas como acontece na esquizofrenia hebefrênica. O discurso se mantém coerente, mas com uma certa dificuldade de apreensão da realidade com precisão. Estas características induzem facilmente um diagnóstico de neurose para pacientes jovens nomeados sociologicamente como “mal educados” e instáveis. Aqui estão os primeiros indícios da psicose ordinária.
O passo seguinte de Iordan Gurgel foi buscar novas pistas na esquizofrenia latente (1911) de Bleuler. Pelo uso de “latente”, já sabemos que indica algo que ainda não se manifestou, mas que pode vir à tona em algum momento. Bleuler acreditava que eram casos de Esquizofrenias cujos signos eram bastante discretos, porém que poderiam ser percebidos por um clínico atento aos sintomas de irritação sem motivo aparente, incoerências discursivas que não chegavam a ser rupturas com a norma sintática ou semântica, personalidade aparentemente rígida, pouquíssima tolerância à frustração, comportamentos compulsivos e traços paranoides e catatônicos. Ele afirmava que estes traços poderiam ficar mais evidentes no decorrer da vida do sujeito, ou que poderiam ficar encobertos por toda a vida. Aqui está um dado importante: Bleuler acreditava que esta era a forma mais frequente de esquizofrenia, mas que a ausência de tratamentos e internações encobriam a patologia. Alguns autores criticam Bleuler por ter criado este conceito por entenderem que ele praticamente universaliza a esquizofrenia ao abrir a possibilidade de um diagnóstico onde não estão presentes francamente os chamados sintomas esquizofrênicos clássicos. “Numerosos autores se alarmaram não só pela extensão desproporcional da esquizofrenia bleuriana, senão pelos perigos que se derivam da generalização do diagnóstico de esquizofrenia simples (sem sintomatologia produtiva) e latente (sem signos clínicos palpáveis)”. Por acaso, também não haveria por aí uma acusação à psicanálise lacaniana de generalizar a psicose com o conceito de psicose ordinária? Retornaremos a este ponto mais adiante.
Em 1938, o termo borderline apareceu pela primeira vez com o psicanalista norte-americano Adolph Stern. Este termo, que alguns julgam erroneamente ser análogo ao conceito de psicose ordinária, foi trazido para nomear um grupo de neuroses que, para ele, estavam na fronteira com as psicoses. Indíviduos que apresentavam fortes reações contratransferenciais e manifestações clínicas descritas como de natureza análoga à psicótica quando estavam sob forte pressão, mas que logo se tornavam sociáveis e relativamente funcionais novamente. Apesar do termo ter sido inserido no vocabulário psicanalítico e psiquiátrico, não ganhou grande repercussão nos dois campos investigativos, caindo praticamente no esquecimento até a década de 50.
Em 1941, um estudioso chamado Zilborg levou para a nosologia o conceito de esquizofrenia ambulatorial para se referir a formas brandas e bastante discretas de esquizofrenia que circulavam pelos ambulatórios e hospitais gerais, no entanto, eram esquizofrenias que quase não chegavam aos manicômios. Percebam que, até aqui, todos esses signos discretos ditos patológicos estão circunscritos somente à esquizofrenia pela psiquiatria, não há uma classificação relativa à paranoia ou à psicose em sentido mais amplo.
Em 1942, a psicanalista Helen Deutsch cunhou o termo “personalidade como se” para referir-se às personalidades que manifestavam uma certa inserção social que mascarava (persona) distúrbios crônicos em relacionamentos os quais exigiam maior envolvimento afetivo.
Em 1949, Hoch e Polatin criaram o conceito de esquizofrenia pseudoneurótica para dar conta de quadros aparentemente de neuroses mais gerais etiologicamente, mas quadros estes impossíveis de serem classificados. Os pacientes eram atormentados por uma angústia difusa sem causa aparente. Eram descritos também com aquilo que a medicina costuma chamar de transtornos de desenvolvimento pervasivos, mas que manifestavam desordens especialmente sexuais associadas à esquizofrenia. Neste mesmo período, muitos outros conceitos foram criados para tentarem dar conta dos casos inclassificáveis da psiquiatria, porém surgiram tantos na nosologia que acabaram tornando a classificação praticamente impossível.
Finalmente o termo borderline foi resgatado do quase esquecimento por Robert Knight em 1953. Ele chamou de estados borderline aqueles casos de pacientes internados em hospitais psiquiátricos que também não poderiam ser classificados como neuróticos nem como psicóticos e que apresentavam sérios distúrbios afetivos que levavam a um comportamento inconsequente, excêntrico e relações interpessoais instáveis, entretanto, sem apresentar claramente sintomas esquizofrênicos clássicos. A recuperação do termo borderline trouxe discussões nosológicas sobre em que tipo de classificação mais ampla ele deveria ser alocado. Seria um transtorno de personalidade, ou um transtorno de humor? Seria um estado transitório, ou seria permanente? Poderia ainda ser alocado como uma categoria própria? Estes debates levaram a mudanças de categorização do termo. Nas últimas décadas, ele esteve incluído tanto na categoria de psicose por exemplo, pois podemos encontrá-lo no CID 9 (1976) como uma série de sintomas associados à esquizofrenia latente, como num tipo específico de transtorno de personalidade com instabilidade emocional, o que o retirou da categoria de psicose no CID 10.
Mas e a psicanálise lacaniana? Quando ela começou a se aventurar com mais vigor nos chamados casos inclassificáveis da clínica psicanalítica para criar o terreno fértil que levaria ao que hoje denominamos como psicose ordinária?
Tudo começou com um desafio lançado por Jacques-Allain Miller aos analistas que consistia na busca pessoal de momentos na clínica em que fossem confrontados com situações inusitadas que os levassem ao aprendizado de algo novo, algo que escapasse do lugar comum das categorias clássicas.
Em 1996, o Conciliábulo de Angers buscou “os efeitos de surpresa na clínica da psicose” para que a clínica psicanalítica se tornasse mais aberta ao inesperado e rompesse assim com o classicismo que dominava a práxis de muitos membros da AMP.
Em 1997, a Conversação de Arcachón tentou conceitualizar as gratas surpresas que apareceram durante e depois do Conciliábulo de Angers. Nesta tentativa de expressar o novo, muitos esbarravam nas ferramentas conceituais de sempre e assim repetiam o classicismo. A descoberta de casos desafiadores forçou os participantes a buscarem compreendê-los com novos instrumentos como a curva de Gauss, que foi usada para tentar pensar a neurose e a psicose para além do lugar comum que é manejá-las pensando numa descontinuidade entre as duas estruturas.
Mas foi somente em 1998 durante a Convenção de Antibes que apareceu pela primeira vez o termo psicose ordinária. Ele surgiu para nomear uma nova categoria clínica lacaniana pinçada do último ensino de Lacan e não como uma categoria de Lacan evidentemente. Esta nova categoria permite que hoje façamos uma releitura dos primeiros textos de sua obra com uma nova perspectiva. O termo ordinária é claramente relativo a uma oposição àquelas psicoses clássicas, que aqui chamamos de extraordinárias, às quais os signos que denotam a presença de uma estrutura psicótica são bem evidentes, pois ficam expostos os fenômenos elementares da psicose a partir do desencadeamento no sentido da psicopatologia clássica: a combinação de duas rupturas, uma com a funcionalidade do aparelho psíquico e outra com a realidade. Após a convenção, se compreendeu que aqueles casos que antes eram tidos como raros por faltarem instrumentos conceituais para que fossem percebidos os signos discretos da presença de uma psicose, na verdade, eram casos muito recorrentes. Com o termo psicose ordinária, a psicanálise pôde finalmente se desprender de vez das amarras fenomenológicas do termo borderline e abrir uma nova fronteira para o diagnóstico da psicose.
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