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FIBROMIALGIA E PSICOSE ORDINÁRIA*

Atualizado: 27 de fev. de 2021

"Concentrada está a sua alma no estreito orifício do molar."

Wilhelm Busch


Quadro "o jardim das delícias terrenas" (Bosch)



O conceito de neuroses narcísicas só foi abandonado por Freud para se referir às parafrenias a partir do artigo "Neurose e Psicose" (FREUD, 1924), restringindo-o à melancolia. Isto não impediu que Jacques-Alain Miller (2005) o revisitasse através da contraposição entre libido do ego e libido de objeto contida na "Introdução ao narcisismo" (FREUD, 1914). Miller o recupera para se referir a um paciente parafrênico de Bernard Porcheret, um caso conhecido como "o homem dos polegares que rangem".

Sobre ele, Miller afirma:

[...] acontece que, quando o polegar do sujeito está investido libidinalmente, mobiliza todo seu interesse intelectual e apaga os outros objetos do mundo. Ao menos em certos momentos, só lhe interessa seu polegar. Em vez de expandir-se de maneira fluida no mundo e de criar interesses diversos (intelectuais, amorosos, etc.), a libido (de ego) se concentra somente nele, no seu polegar ou no tumor. Logo, podemos efetivamente falar de um fenômeno narcisista (MILLER, 2005, pág. 182).


Quando falamos sobre "fenômenos narcisistas", não temos como não recordar de alguns pacientes que passam por todo tipo de serviços públicos de emergência para tentar dar conta de suas fortes dores no corpo diagnosticadas como fibromialgia. Trata-se de pacientes medicados com diversos analgésicos sem que eles sejam capazes de diminuir efetivamente suas dores. Além dos comprimidos, encontramos muitas sessões fracassadas de fisioterapia custeadas pelo SUS. Dada essa ineficiência, alguns médicos chegam mesmo a desconfiar da existência de algum conflito psíquico gerando a dor crônica. Assim, alguns destes casos chegam como urgências subjetivas às clínicas sociais e serviços de algumas instituições públicas e privadas.


Neste ponto, nos cabe interrogar qual é o lugar da psicanálise no atendimento a estes casos encaminhados pelas instituições organizadas a partir do discurso científico da saúde mental, que se caracteriza pela ética do bem fazer. Como sabemos, a psicanálise é chamada a responder no “um a um” com a ética do bem dizer, que é a ética da enunciação presente no desejo do analista de estabelecer a diferença absoluta, no desejo de retirar o falasser da queixa e da repetição e direcionar o tratamento para a crença de que o seu sintoma possui um sentido ancorado no significante primordial, assujeitado ao insconsciente transferencial e ao saber alienante do significante com os parâmetros da intenção e da extenção estabelecidos por Lacan na “Proposição de 09 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola” (LACAN, 1967). Ainda que o melancólico não possa se identificar ao significante primordial assemântico que o permitiria contar-se como 1 no campo da linguagem ao mesmo tempo que permaneceria como um vazio, o que o condena ao espelhismo e o exila da enunciação, é o desejo do analista que permite articular a intenção e a extenção na clínica na medida em que disponibiliza aos pacientes uma escuta que abre um espaço para que estes falasseres soltos no mundo, errantes, tenham a possibilidade de servir-se da psicanálise para inventar algo que lhes permita ordenar “uma desordem na junção mais íntima do sentimento de vida no sujeito” (LACAN, 1957, p. 565), ali onde o corpo se desfaz na hiância mortífera. O desejo do analista permite levar a intenção da Escola para onde estiver quando é capaz de sustentar uma relação transferencial ali onde o discurso científico ignora o falasser. Daí o posicionamento ético de atendermos os encaminhados ainda que não tivessem demandas de análise.


De saída, chamava a atenção no relato dos pacientes a sua articulação linguageira, que parecia se fazer sem o uso do fantasma. Entre os relatos, evidenciamos, por exemplo, a queixa de que as fortes dores no corpo, certamente, seriam decorrentes de algo mais grave: "possivelmente de um tumor" que ainda não teria sido detectado pelos exames médicos de imagem. Igualmente, podemos destacar casos intermitentes de pacientes que chegavam com a afirmação de que as dores tinham surgido de maneira aguda durante a adolescência e tinham se mantido quase inalteradas. Encontramos ainda relatos constantes de fadiga, falta de apetite, desinteresse pelas atividades que gerariam prazer como os esportes e o sexo, a incapacidade de manter-se nos empregos "por causa das dores constantes", “baixa autoestima” recorrente, ideias suicidárias e, finalmente, uma queixa de amor não correspondido.


Depois de algumas entrevistas, um ou outro não retornava e não era mais visto durante alguns meses. Quando reapareciam, não era raro constatar que tinham sido levados à emergência de um hospital psiquiátrico. Lembramos particularmente de uma paciente que chamaremos de "Joana", uma paciente que desencadeou um estado maníaco que a levou a ficar dias sem dormir. Segundo a mesma, a excitação surgiu logo após ter tomado "uma injeção cavalar" de um forte analgésico que pôs fim, imediatamente, à sua dor perene no braço. Perguntei-lhe se a injeção tinha sido de um opiáceo, mas ela não me soube responder.


Estes breves relatos foram selecionados intencionalmente por possuírem o diagnóstico de fibromialgia. A partir deste recorte de um quadro muito mais amplo que implica a singularidade de cada paciente, questionamos se aí perfilavam-se alguns casos de psicoses ordinárias com seus signos discretos (os fenômenos de Φo) e que recebiam a classificação médica de fibromialgia. Para tanto, partimos da proposta milleriana de pensar o diagnóstico de psicose ordinária tendo como ponto inicial uma tripla externalidade (MILLER, 2010).

Nestes casos de fibromialgia, identificamos:


1) A incapacidade de retirar do Eu a libido que deveria ser investida nos objetos como esportes, parceiros sexuais e o trabalho, indicando aquilo que Miller (2010) chama de externalidade social.

2) A ausência de introversão libidinal da fantasia e o golpeamento narcísico do Eu através da baixa autoestima e dos pensamentos suicidários, aquilo que Miller (2010) chama de externalidade subjetiva, indica uma clara identificação ao objeto a como dejeto, rebotalho.

3) Por fim, a externalidade corporal aparece na certeza de que se encontrarão doenças mais graves, o que pode ser pensado ou como casos de hipocondria, ou como um esforço de nomeação imaginária.


Nos casos que acompanhamos, não apareceu algum fenômeno elementar sugestivo de Po, nenhum transtorno de linguagem. A dor crônica comparece aí onde a psicose não se desencadeia extraordinariamente. Isto é o que irrompe no caso Joana, no qual a solução fibromiálgica falha. Foi apenas após o retorno ao tratamento que ficou claro que o fim das dores causou o desencadeamento da mania.


Podemos chamar esta experiência contingencial, a partir de Lacan (1957) em "De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose", de um encontro com Um Pai. A mania aponta para a desregulação do gozo e para a fuga do sentido. De alguma forma, a localização da dor no braço (neurose narcísica) trazia um grampeamento do simbólico, que estava solto, ao imaginário e ao real entrelaçados, servindo de suplência ao furo estrutural, algo que fazia do “si mesmo” o próprio conteúdo da vida. O entrelaçamento entre o real e o imaginário era percebido pela distorção na relação entre a imagem e o objeto. O desprendimento do simbólico era percebido pela infinitização da cadeia significante sem o limite exterior à cadeia, sem o ponto de basta da significação fálica, bem como pela dificuldade de controlar o tempo cronológico.


Há um trecho de Freud (1915) em "Luto e Melancolia" que parece fundamental para entender essa passagem à mania depois do fim da dor no braço. Ele afirma ali que a retenção da libido no Eu por meio da sua identificação ao objeto perdido faz com que nada que seja relativo aos objetos externos seja interessante, pois a dor tem a capacidade de concentrar a alma no local onde dói, tornando o mundo um lugar sem brilho, pois, se dói, não se ama. Essa elaboração de Freud foi a referência para Lacan (1957) falar sobre "uma desordem na junção mais íntima do sentimento de vida" em "De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose", aquilo que a psiquiatria chama de "o crepúsculo do mundo na psicose". É a partir daí que devemos pensar nas consequências da liberação súbita de uma enorme quantidade de investimento narcísico no caso de Joana.


Propomos pensar a mania como uma reação à identificação como dejeto. A não-função do objeto, que não lhe dá lastro, faz com que o objeto permaneça sem o devido uso, sem aliená-lo ao Outro para permitir a dinâmica do desejo, sem fazer a mediação entre Das Ding e o Outro. Podemos evocar aqui a lembrança do gollum Smigol do Senhor dos Anéis, uma criatura que definha com a não-função do objeto, se mortifica, se desgraça com a sua identificação alienante e é impelido a vagar como um erotômano escravizado pelo amor louco. Tal como Freud (1915) afirma em “Luto e Melancolia”, a aniquilação da relação objetal aparece amiúde após uma frustração gerada pela escolha amorosa. Ainda hoje é uma advertência de que não se faz a escolha de objeto sem consequências.


Nota*: apresentei este texto originalmente na Sessão Bahia da Escola Brasileira de Psicanálise, na Jornada de Núcleos de Investigação do Instituto de Psicanálise da Bahia.


Referências Bibliográficas:


FREUD, Sigmund. Obras completas, volume III. 3 ed. Rio de Janeiro, Imago Ed, 1969.

FREUD, Sigmund. Obras completas, volume XII. 3 ed. Rio de Janeiro, Imago Ed, 1969.

FREUD, Sigmund. Obras completas, volume XIV. 3 ed. Rio de Janeiro, Imago Ed, 1969.

LACAN, Jacques. Escritos. 1 ed. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed, 1998.

LACAN, Jacques. O seminário, livro 10. 1 ed. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed, 2005.

LACAN, Jacques. Outros escritos. 1 ed. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed, 2003.

MILLER, Jacques-Alain. La psicoses ordinaria. 1 ed. Buenos Aires, Paidós Ed, 2005.

MILLER, Jacques-Alain. Efeito do retorno à psicose ordinária in Opção Lacaniana online nº 3, EBP, Rio de Janeiro, 2010.

SORIA, Nieves. Duelo, melancolía y manía en la práctica analítica. 1 ed. Buenos Aires, Del Bucle Ed, 2017.

 
 
 

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